UMA HISTÓRIA DE DOAÇÃO, SERVIÇO E COMPAIXÃO
“Fazei tudo o que Ele vos disser” (Jo 2,5).
Numa Arquidiocese cuja Padroeira é a Mãe de Jesus, é preciso obedecer sempre a esta recomendação: “Fazei tudo o que Ele vos disser”. Esse enunciado esconde a confiança que torna possível a transformação de água em vinho; do sofrimento em festa e da aposta na continuidade do milagre da vida.
Foi com essa confiança que padres, freiras, leigos e bispos da Arquidiocese de Natal enfrentaram, desde meados da década de 1940, as dificuldades do pós-guerra na capital potiguar e o sofrimento dos sertanejos no restante do estado, provocado pela brusca variação climática entre seca e enchentes e, sobretudo pela exploração de homens e mulheres, jovens e crianças que, atacados em sua dignidade, já não sabiam a quem recorrer. Lembramos as grandes secas da década de 1950, quando a fome e o êxodo rural mudavam a paisagem humana da região. Padres e Bispos da nossa Igreja vão em busca de diligências que amenizem as dores e a vergonha da fome. Foi nessa luta que homens como o Monsenhor Expedito Sobral de Medeiros dizem ter aprendido fazer a ligação fé e vida. Cito as palavras do Monsenhor Expedito em seu livro “Pelos Caminhos do Potengi”:
Fomos com o padre Eugênio visitar o açude público “Pataxó”, no meu município natal. Lá chegando pelas 10 horas, vimos um formigueiro humano de cassacos carregando barro em caminhões e em costas de jumentos. Uma turma nos reconheceu, pois andávamos de batina, e correu ao nosso encontro, debaixo de um juazeiro. Um deles, parecendo ser o líder, foi nos dizendo: “Seu vigário, tire nós dessa escravidão, pelo amor de Deus!”. (MEDEIROS, 1990, p. 26).
Este pedido continuou a ressoar na vida do então padre Expedito Sobral, a ponto de fazê-lo entender as exigências diárias da conversão ao projeto de Deus. Foi assim que, como assistente espiritual da Juventude Agrária Católica (JAC), na Arquidiocese de Natal, propôs em 11 de fevereiro de 1958 (ano de uma das piores secas) que cada militante da JAC doasse o equivalente a um dia de salário para os flagelados da seca. Essa coleta realizou-se no período da Semana Santa daquele mesmo ano, na cidade de São Paulo do Potengi, tornando-se, assim, a primeira semente do que mais tarde germinaria como Campanha da Fraternidade.
Foi mediante o clamor do povo de Deus espalhado pelas terras potiguares que a Igreja de Natal, seguindo as recomendações de Nossa Senhora da Apresentação, acolheu as sementes e frutos do chamado “Movimento de Natal”, entendido como expressão de maturidade de fé, de vivência das virtudes da esperança e da caridade a serviço da justiça social. Muitos foram os frutos desse conjunto de ações pastorais que amadureceram no calor da fé, regados pela Pastoral de Conjunto: “Campanha da Fraternidade”. Um investimento de evangelização cujo valor empregado foi, e continua sendo, a compreensão em forma de doação, o serviço como sinal de ternura e a compaixão revestida de politização.
A Campanha da Fraternidade nasce num contexto histórico de junção de forças em favor da dignidade da pessoa humana. Tal contexto é herdeiro das campanhas de conscientização que primam por uma educação, como: “De pé no chão também se aprende a ler”, as experiências do Movimento de Educação de Base (MEB), do Serviço de Assistência Rural (SAR) e da “Pedagogia da Esperança”, desenvolvida por Paulo Freire no município de Angicos-RN (1952). Na experiência dessa pedagogia política, travam-se lutas educativas pela formação de cidadãos conscientes das exigências da realidade na qual estão inseridos, movidas pelo desejo de ver multiplicarem-se agentes de transformação dessa mesma realidade.
A coleta proposta por Dom Eugênio de Araújo Sales, realizada em 08 de abril de 1962 (1º Domingo da Paixão) em toda a Arquidiocese de Natal, tinha como implícita a intenção do abraço aos deserdados da sorte. Aquela coleta projetou um novo tempo no qual os cristãos assumiam seus deveres de contribuintes e responsáveis pelas obras sociais e apostólicas da Igreja e também levavam a efeito a caminhada de Jesus até o calvário assumindo pela Cruz as dores de todos, mas vencendo a morte pela ressurreição.
As palavras de Dom Eugênio Sales ao anunciar a primeira Campanha revestem-se de um caráter educativo. Diz o então bispo: “na hierarquia dos valores, damos mais ênfase à parte educacional do que mesmo ao financeiro” (A Ordem de 25/03/1962). É a advertência de que a doação, quer de bens materiais, quer de bens afetivos, implica em compromisso ético. A esse compromisso pode chamar-se também de resistência à injustiça e à crueldade. Como resistir com firmeza e com leveza? Esse foi um dos aprendizados nos primeiros anos da Campanha.
Olhando para os 50 anos dessa história, podemos entender que a beleza do servir só é plena se for realizada com ternura. Quando as irmãs vigárias de Nísia Floresta faziam suas caminhadas de casa em casa, de rua em rua, de povoado em povoado, partilhavam mais que a interpretação de leituras bíblicas e mais que alimentos; partilhavam um jeito de viver solidário. Aquela gente experimentava a graça “Eu te louvo, Pai, senhor do céu e da Terra, porque escondestes essas coisas aos sábios e inteligentes, e as revelastes aos pequeninos”. (Lc 10,21).
O vigor daqueles agentes de pastoral residia na certeza de que, mais importante do que dar uma esmola ou fazer um favor, a fraternidade deve revestir-se de cuidado com o irmão. Aqueles agentes experimentavam a projeção de uma aura de confiança capaz de transformar sentimentos e pensamentos em ações solidárias.
A Campanha da Fraternidade é herdeira da dedicação de muitas vidas que se entregaram e se entregam à causa do Evangelho por ouvir o chamado de Cristo e o clamor dos irmãos. Entre tantos esforços de irmãos abnegados que contribuíram para êxito desse trabalho de evangelização vale destacar , o do então Padre Heitor de Araújo Sales em visitar a AKTION MISERÉOR e de lá trazer informações sobre a experiência de campanhas destinadas ao combate à fome e à pobreza na Alemanha.
Tais informações trazidas e adaptadas à nossa realidade tornaram-se subsídios para a criação da Campanha da Fraternidade. Esse e tantos outros militantes da Igreja operaram na globalização de ações solidárias com que, mesmo antes do Concílio Vaticano II, a Arquidiocese de Natal, juntando-se às iniciativas espalhadas no mundo, já tratava de responder aos desafios contemporâneos.
Meses depois da primeira iniciativa realizada em nossas terras, o Papa João XXIII, na seção de abertura do Concílio Vaticano II, anuncia que “a Igreja Católica deseja mostrar-se mãe amorosa de todos, benigna, paciente, cheia de misericórdia e bondade”. (Seção de abertura do Concílio Vaticano II em 11/10/1962).
Esse já era o espírito da Igreja de Natal que se esforçava por começar cuidando dos flagelados da seca, das mulheres maltratadas, das crianças abandonadas e dos que não tinham assistência médica.
No ano de 1963, a Campanha espalha-se pelas dioceses do Nordeste com tanto êxito que a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), por intermédio do Secretário Geral Dom Helder Câmara, propõe que se estenda a todo o país.
A Campanha da Fraternidade em âmbito nacional
A primeira Campanha da Fraternidade realizada em âmbito nacional sob a orientação da CNBB aconteceu em 1964, em pleno desenvolvimento do Concílio Vaticano II, quando a Igreja Conciliar, atenta para o cuidado com a dignidade da pessoa humana, repudia todas as formas de opressão que impedem o exercício dessa dignidade.
“É preciso, portanto, que tornem acessíveis aos homens todas aquelas coisas que lhe são necessárias para levar uma vida verdadeiramente humana. Tais são: alimento, roupa, habitação, direito de escolher livremente o estado de vida e de construir família, direito à educação, ao trabalho, à boa fama, ao respeito, à conveniente informação, o direito de agir segundo à norma reta de sua consciência, o direito à proteção da vida particular e a justa liberdade também em matéria religiosa” (GS, 279).
A Igreja abre-se à renovação. Nesse contexto, os primeiros temas da Campanha da Fraternidade cuidam de refletir sobre a Igreja e suas estratégias de atuação no mundo.